A cruz carregada pelas pessoas LGBT

Renan Quinalha (Brasil Post)

No último domingo, teve lugar em São Paulo a maior marcha do orgulho LGBT do mundo. Milhões de pessoas ocuparam as ruas reivindicando o direito ao reconhecimento, o respeito à diversidade, o livre uso dos corpos e a vivência mais autêntica possível dos desejos.

Desde as “Diretas Já”, a Parada do Orgulho LGBT se afirmou como a maior manifestação política de rua do período democrático, maior inclusive do que as manifestações de 2013, ainda que muitos se neguem a reconhecer o potencial transformador de uma mobilização colorida, alegre, popular, diversa e pulsante, que escapa aos formatos tradicionais de pensar e de agir politicamente.

No entanto, uma intervenção inquestionavelmente politizada chamou atenção da imprensa e causou enorme repercussão em meio à celebração festiva do orgulho LGBT: em um contexto de embate entre setores religiosos fundamentalistas e aqueles que lutam pelos direitos fundamentais de segmentos vulneráveis, uma mulher transexual, a atriz Viviany Beleboni, apareceu pregada em uma cruz, com marcas vermelhas pelo corpo para lembrar o sangue escorrido, tendo uma faixa acima da cabeça com a seguinte mensagem: “Basta de homofobia com LGBTs”.

Tal performance assume um sentido muito particular se considerarmos que, no Brasil, em 2014, uma pessoa LGBT foi assassinada a cada 27 horas segundo relatório do Grupo Gay da Bahia. As pessoas trans são ainda mais vulneráveis. Isso sem falar nas diversas formas e facetas das demais violências e discriminações a que essa população está sujeita no mercado de trabalho, nas políticas públicas, no ambiente doméstico, nas ruas e demais lugares públicos, enfim, em toda sua sociabilidade.

Isso foi solenemente ignorado nas redes sociais e as fotos daquilo que era um protesto contra a homotransfobia foram interpretadas como um ato de ofensa dirigido ao cristianismo. A apropriação dessa leitura enviesada por líderes evangélicos oportunistas, como Marcos Feliciano, foi imediata. Segundo ele, em seu perfil no Facebook, são imagens que “chocam, agridem e machucam”. Por sua vez, Rogério Rosso, líder do PSD na Câmara dos Deputados, apresentou nesta segunda-feira (08) projeto de lei com o objetivo de combater o que chamou de “cristofobia”, prevendo punição de multa e aumento da pena de reclusão .

Contudo, ainda bem que a moral e os bons costumes não precisam nos governar mais. De minha parte, ao contrário do pastor Feliciano, estou chocado, agredido e machucado com:

1 – Gente que não entende o que é uma performance e quer censurar, por uma patrulha religiosa, manifestações artísticas legítimas e interessantes inclusive pelos debates que gera;

2 – Gente incapaz de compreender que se trata de uma representação da crucificação, método de execução utilizado amplamente na Antiguidade e que simboliza o sofrimento e a opressão desde que foi abolido;

3 – Aliás, não foi só Jesus que foi crucificado na história da humanidade, ainda que ele seja um dos mais célebres personagens que tenha passado por isso;

4 – Gente que ignora que essa metáfora da crucificação vai muito além do caso do Jesus, tendo sido apropriada popularmente e usada comumente com o sentido de pessoas que sofreram injustiças e excessos punitivos. Por exemplo, o vice-presidente Michel Temer disse, nesta segunda-feira (8) que o ministro da Fazenda, Joaquim Levy, deveria ser tratado como “Jesus Cristo” que foi crucificado, mas obteve posteriormente uma “vitória extraordinária” ;

5 – Gente que esquece que vários artistas e pessoas públicas já se valeram dessa referência de significado, de Neymar em capa de revista a Madonna em shows. Outros escritores laureados com prêmios Nobel e Camões, como Saramago, criaram narrativas ficcionais a partir da figura e da história de Jesus, como o “Evangelho Segundo Jesus Cristo”. Mas uma trans se apropriar dessa referência parece mais heresia, né?

6 – Ela não quis atacar Jesus como muitos religiosos fundamentalistas atacam LGBT com seus discursos de ódio, mas fazer um protesto com seu corpo que sofre diariamente o preconceito sobre a invisibilidade e a violência a que estão submetidas as pessoas trans. E conseguiu um enorme êxito nessa empreitada: quando pessoas trans são assassinadas e agredidas brutalmente, o que ocorre cotidianamente em nosso país, com sangue e hematomas reais, ninguém se solidariza ou se revolta.

Essa intervenção artística tem contexto e tem lugar. Foi feita em um período no qual o Estado laico sofre ameaças concretas de setores religiosos fanáticos e preconceituosos. E foi realizada no lugar mais apropriado possível: em uma manifestação que pedia respeito para as pessoas LGBT, com várias pessoas que fizeram de seus corpos espaços de resistência e de vocalização de demandas, estando totalmente afinada com o propósito da parada. Não foi feita em um templo religioso e não pode ser interpretada como se ali tivesse sido feita.

De toda essa reação, enfim, uma coisa boa surgiu: finalmente, os religiosos fundamentalistas olharam e enxergaram a cruz que uma pessoa LGBT carrega para sobreviver no Brasil. É oportuno que agora eles queiram discutir esse assunto tão grave e urgente. Que comecem mobilizando a frente parlamentar religiosa, especialmente evangélica, para legislar em favor dessa população. E, quando tivermos igualdade de direitos e pleno reconhecimento, talvez não precisemos mais de performances como essa.