Quem ganha com a onda ultra-conservadora que ameaça a democracia no Brasil?
Flavia Biroli (Blog da Boitempo)
Um conjunto de retrocessos nos direitos das pessoas está em curso no Congresso Nacional hoje. Baseados em visões contrárias aos direitos dos trabalhadores, aos direitos humanos e aos direitos individuais que concernem a expressão, a sexualidade e a autonomia das mulheres, poderão anular décadas de conquistas e os passos dados para a construção de uma sociedade mais democrática e mais justa.
É para esse retrocesso, para a urgência de se fazer frente a eles em defesa da democracia e da cidadania, que procuro chamar a atenção neste texto.
Mesmo sendo diárias as investidas contra direitos fundamentais, não é disso que fala o noticiário político dos jornais e telejornais de maior circulação e público brasileiros. Neles, duas temáticas dão contorno à crise atual, a corrupção e a economia.
A primeira, apresentada de maneira seletiva, acaba expondo até certo ponto problemas de base das democracias contemporâneas. Isso ocorre a despeito de os noticiários serem restritos e alinhados a interesses que não são alheios a essa forma de realização da política.
Embora sirvam para alimentar reações à própria democracia e, pela forma seletiva como são apresentados, alimentem setores golpistas e desonestos da oposição, os casos de corrupção denunciados e noticiados expõem o fato de que o exercício de influência nas democracias é desigual e corresponde a padrões bem definidos. Fica claro quem tem acesso ao Estado, quais interesses se fazem valer e como são construídas as carreiras políticas em circunstâncias nas quais o financiamento privado é a ponta mais visível da colonização da política pelo capital.
É preciso muito esforço, mesmo para os mais aguerridos anti-petistas, para ver nos desvios de recursos e formas de financiamento das campanhas a obra de um partido ou de um punhado de atores políticos. Por outro lado, é preciso suspender a visão e os demais sentidos para acreditar que alguma transformação mais profunda poderá se dar sem que se rompa com a dinâmica pela qual o capital faz valer seus imperativos, investindo de protagonismo seus operadores e definindo os limites do possível na política.
A segunda temática que mencionei, predominante nos noticiários, é a economia. O discurso contra a corrupção no debate público brasileiro hoje se acomoda bem à ideia de que o deficit da política não seria de democracia, mas de gestão competente e de honestidade. A ligação com o problema da corrupção aparece na forma da crítica à amplitude do Estado e a concepções de desenvolvimento que lhe dão protagonismo.
O mercado, espaço de relações regido pelos imperativos do lucro e organizado numa lógica que potencializa as assimetrias, não é colocado em xeque na análise dos fatores que comprometeriam a democracia. A gestão política da economia é medida, por sua vez, não pelos efeitos que tem sobre as pessoas, mas pela avaliação que dela é feita pelos próprios agentes de mercado, em um círculo vicioso do exercício de influência desses agentes que é apresentado como um dado da natureza. As notas que orientam investimentos pelas agências “de classificação de risco” e as avaliações das consultorias de “gestão de investimentos”, com o peso dado a elas na construção do ambiente político-econômico, mostram isso claramente.
Chamo a atenção para o fato de que ao mesmo tempo que essas temáticas e enquadramentos são destacados, há uma dimensão da dinâmica política atual que tem sido negligenciada. Está em curso no Congresso Nacional uma investida contra os direitos que compromete as conquistas democráticas das últimas décadas.
Os grupos mais atingidos pelos retrocessos propostos ou já produzidos são trabalhadoras/es, indígenas, jovens, em especial a juventude negra, mulheres, lésbicas, gays. São os alvos preferenciais em um Congresso que desde a eleição de 2014 sabíamos mais conservador.
Sobretudo na Câmara dos Deputados, as alianças entre os setores conservadores têm sido mobilizadas para reduzir o tipo de regulação do Estado que permite ampliar os direitos, a dignidade e as condições para o exercício da liberdade.
É assim que vem atuando a aliança apelidada de BBB, feita de acordos entre as bancadas da bala, do boi e da bíblia, e apadrinhada pelo presidente da Câmara Eduardo Cunha – apadrinhamento que tem surtido efeito, vale dizer, uma vez que a apresentação sucessiva de provas contra ele, que incluem contas bem documentadas na Suíça para depósito de recursos provenientes de corrupção e o fato de ter mentido à CPI quando perguntado sobre essas contas, não foi até o momento que escrevo este texto suficiente para retirá-lo da presidência da Câmara.
Faço uma pausa para falar de Cunha. Patrono do financiamento de muitas campanhas, apoiado por partidos como PSDB e DEM, que vêm nele o fiador possível do impeachment de Dilma Rousseff, ele é um exemplo bem acabado de um tipo político que chega hoje com sucesso à Câmara dos Deputados. Apoia-se em redes de financiamento e influência que têm por base partidos (no caso de Cunha, o PMDB) e empresas que fazem apostas certas naqueles que, eleitos, lhes garantirão influência e lucros e em igrejas que se tornaram uma base renovada para a realização dessas carreiras.
As bancadas conservadoras que mencionei têm seus interesses específicos, mas convergem na defesa de menos Estado na regulação da economia e dos recursos naturais, na defesa da redução de políticas e de subsídios públicos para os setores mais vulneráveis da população. Ao mesmo tempo, querem mais Estado para ampliar os controles, reduzir a autonomia e criminalizar grupos específicos da população.
Do casamento entre neoliberalismo e moralismo ultra-conservador de base religiosa, tomam forma iniciativas que atingem de maneira direta mulheres e LGBTs, embora seus efeitos sejam abrangentes e não se restrinjam a esses grupos. A atuação de religiosos fundamentalistas confronta a laicidade do Estado e ganha identidade política justamente por meio de ações coordenadas para a retirada dos direitos desses setores da população.
A linha de frente de seu discurso público é uma ideia restrita e excludente de família, acompanhada de uma compreensão conservadora dos papéis desempenhados por mulheres e homens na sociedade. Na sua atuação, corroboram a redução de recursos para a saúde pública, para o desenvolvimento da educação pública de qualidade, para a garantia de direitos para os trabalhadores que permitiriam maior segurança para suas famílias.
Sua defesa da família atinge especialmente lésbicas e gays quando promove um Estatuto da Família (falo do PL 6583/2013, em tramitação na Câmara e já aprovado na Comissão Especial constituída para sua discussão) que os exclui diretamente.
Mas é importante compreender que se trata da promoção de privilégios, em uma sociedade na qual a vivência cotidiana dos afetos, da paternidade e da maternidade, da vida familiar é diversa e continuará a ser. O PL 6583/2013 exclui um enorme conjunto de famílias e de relações afetivas do reconhecimento público e do acesso aos direitos usufruídos pelas pessoas que se encaixam na concepção restrita de família que procura chancelar. Caso venha a ser aprovado, pessoas de todas as idades, inclusive as crianças, pessoas de diferentes orientações sexuais, e não apenas aquelas que estão unidas por afeto a outras do mesmo sexo, ficam potencialmente excluídas de direitos e do acesso a políticas públicas.
Outro projeto que mostra o que está em curso nessa suposta defesa dos valores familiares é o PL 5069/2013, de autoria de Eduardo Cunha, que pretende criminalizar a divulgação de informações e o auxílio às mulheres que desejem abortar “ainda que sob o pretexto de redução de danos”, isto é, em casos previstos na nossa legislação. Trocando em miúdos, o projeto cria obstáculos para que a mulher que foi estuprada recorra ao SUS para interromper uma gravidez resultante da agressão. Foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados no dia 21 de outubro e, caso siga adiante, revogará o atendimento integral no SUS para mulheres que sofreram violência sexual (Lei 12.845/2013).
Em outra frente, estão em curso ataques abertos à educação e aos professores. Nesse caso, convergem os grupos religiosos, que reagem a diretrizes que promovem a igualdade de gênero e o respeito à diversidade, e grupos ditos liberais, que reagem à maior presença do pensamento de esquerda e de reflexões favoráveis à justiça social e à equidade nas escolas e universidades brasileiras.
Nenhum desses grupos veio à disputa política a passeio. O primeiro, apoia-se no “pátrio poder”, na ideia de que famílias, como unidades privadas, devem definir o que é melhor para seus filhos. Seria assim, legítimo, considerarem inadequada uma educação que privilegia a tolerância e o respeito à diferença e educarem seus filhos para a homofobia ou para o que vem sendo chamado de “orgulho heterossexual”, numa fórmula que não disfarça a ironia calcada na violência contra a população LGBT.
Sua defesa de valores que seriam familiares nega a muitas e muitos a condição de pessoas. Por isso nada têm a dizer sobre a violência contra meninas e mulheres alimentada pelo machismo, que produz como legado índices vergonhosos de assassinatos contra mulheres no país; também não têm nada a dizer sobre a violência cotidiana contra pessoas identificadas como desviantes por serem lésbicas, gays, travestis ou transexuais. Que tipo de democracia permite essas diferenciações, entre quem merece respeito e garantias para sua integridade física e quem não merece? O que resta, quando essas exclusões são chanceladas, é um sistema político e de direitos muito distante mesmo de ideais democráticos pouco exigentes.
O segundo grupo, o dos que pretendem limpar a educação do esquerdismo, nem sempre está de acordo com os objetivos do primeiro. Mas estão se somando neste momento. A escola sem partido que defendem é prima-irmã da escola sem reflexão sobre gênero. Nos dois casos, definem como ideologia aquilo que não está na sua agenda. Esta seria neutra do ponto de vista partidário – embora claramente defenda a retração do Estado, dos direitos sociais e a ampliação do que definem como economia de mercado, expressão que lhes permite sonegar a informação de que se trata de ampliar os lucros de quem já está em situação privilegiada, reduzindo direitos dos trabalhadores e ampliando a liberdade das grandes corporações e agentes financeiros. Também seria neutra da perspectiva de gênero. Essa afirmação ilógica seria risível em outros tempos, mas o que buscam é justamente caracterizar como neutra uma concepção excludente de como devem viver as pessoas para que eu as respeite. Esta concepção, que querem apresentar como não marcada, embora só pare de pé amparada por crenças religiosas e preconceitos, é que estaria então definindo o ensino “neutro”, orientando conteúdos educacionais e as falas dos professores.
Eu dizia há pouco que não vieram a passeio. Nesse segundo grupo, fica clara a intenção presente em iniciativas do primeiro. Trata-se de criminalizar os professores, exigindo que conteúdos, posições e reflexões sobre cidadania e igualdade sejam banidos das escolas. O PL 1411/2015, proposto por um deputado do PSDB do Rio Grande do Norte, é um dos projetos em tramitação que assumem essa agenda. Ele “tipifica o crime de assédio ideológico”. Seu relator na Comissão de Educação é o deputado, também do PSDB, autor do Requerimento de Informação dirigido ao MEC em maio de 2015 que solicita a exclusão do que foi definido como “ideologia de gênero” do Plano Nacional de Educação, com os desdobramentos que já conhecemos – em uma ação coordenada em diferentes estados e municípios do país, foram retirados dos planos de educação as diretrizes para a igualdade e o respeito à diversidade de gênero. Este último é, ainda, o autor do PL 867/2015, contra o que define como ensino ideológico nas escolas, que vem sendo apelidado por educadoras e educadores de todo o Brasil de PL da Mordaça.
No texto do PL 1411/2015, a “defesa dos avanços nos direitos sociais”, assim como a defesa da igualdade de gênero e de raça e dos direitos da juventude, aparece como exemplo do que o deputado identifica como uma ação totalitária que seria comandada pelo PT. Com base nessas “ideologias” está presente neste projeto algo que é também a espinha dorsal do PL 867/2015: professoras e professores são identificados como manipuladores.
Assim, os avanços lentos nos direitos humanos e sociais no Brasil nas últimas décadas são colocados em questão. Cerca de três décadas depois da transição da ditadura para um regime democrático que preserva a liberdade de expressão, a análise crítica bem informada teórica e empiricamente, que pode permitir educar para a cidadania e estimular as reflexões sobre os problemas do país e do mundo, é vista como motivo para criminalizar professoras e professores.
Trata-se, de uma certa perspectiva, de política tout court, isto é, da disputa pela hegemonia, pelo acesso ao Estado, para fazer valer alguns interesses e reduzir o peso de interesses concorrentes. Deputados e senador do PSDB apresentam projetos para constranger e calar movimentos sociais e indivíduos que identificam como esquerdistas e como base política do petismo. Igrejas evangélicas definem estratégias, como vêm documentando estudos feitos nos últimos anos, para eleger parlamentares que defendam seus interesses institucionais – isenção de impostos, manutenção e ampliação de concessões de rádio e TV.
Mas há mais do que isso implicado nesses projetos. No primeiro caso, estão em questão a liberdade de cátedra e de crítica, a liberdade de expressão e, com ela, a democracia. No segundo caso, não se trata apenas de negócios das igrejas, mas de uma reação conservadora e obscurantista, articulada a ações da Igreja Católica, contra transformações ocorridas nas sociedades nas últimas décadas. Daí a definição de mulheres e da população LGBT como alvos. Mudanças profundas e a ampliação da legitimidade das lutas desses grupos por direitos transformaram a correlação de forças no Brasil e no mundo. É às transformações que assim foram produzidas que reagem os ultraconservadores, ainda que sem dúvida procurem mobilizar essa reação para fins eleitorais. O moralismo conservador serviria não apenas para angariar votos, mas também para ocultar ou ofuscar outras dimensões da sua atuação política. Algo semelhante pode estar se dando quando políticos do PSDB encontram em fórmulas fascistas de atuação política um caminho para angariar votos em um momento de polarização política, em que a oposição violenta ao PT e aos que são identificados como petistas é afirmada.
Parece-me necessário qualificar com clareza a agenda dos parlamentares vinculados a igrejas evangélicas e à católica e de seus aliados ultra-conservadores no Congresso hoje: combatem décadas de luta por respeito às pessoas independentemente do seu sexo e da forma como vivem sua sexualidade e seus afetos. Investem contra a construção lenta e difícil de processos educativos que promovam nas escolas um conhecimento atrelado à cidadania, visando a construção de uma sociedade na qual possamos reduzir a violência, promover a igualdade com respeito às diferenças e abrir caminhos para garantir mais dignidade para as pessoas.
Pergunto-me sobre o que pensam do “PL da Mordaça” os que são de fato liberais. Pergunto-me, também, se cidadãs e cidadãos religiosos, evangélicos ou católicos, estão cientes de que suas lideranças no Congresso promovem hoje retrocessos nos direitos humanos, criando leis e difundindo preconceitos que levarão a mais violência contra homossexuais e mulheres, a menos capacidade para a tolerância e a solidariedade, a uma sociedade que não vai se tornar menos plural, mas menos justa.
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Flavia Biroli é professora do Instituto de Ciência Política da UnB. É autora, entre outros, de “Feminismo e política: uma introdução” (Boitempo, 2014), escrito em co-autoria com Luis Felipe Miguel.