Machos ativos comedores, as passivas, promiscuidade e o medo de amar

Eliseu Neto

Primeiro, devemos pensar sobre o que é ser promíscuo. Para a ONU (Organização das Nações Unidas), significa ter mais de dois parceiros por ano. Pobres dirigentes que definiram assim, não devem ser muito animados.

No nosso meio, esse é um tema recorrente. Sempre acho irônico que um grupo que sofre preconceito na pele seja ele mesmo provocador de preconceito. Mas lembro, então, do educador Paulo Freire, que disse: “Sem uma educação libertadora, o sonho do oprimido é ser opressor”. Os gays, na falta de um referencial próprio, acabam utilizando aquilo que conhecem do meio heterossexual e tentam se organizar assim.

Eu gosto de fazer uma brincadeira com amigos (e lembre-se que, como se diz no senso comum, “toda brincadeira tem um fundo de verdade”). Digo que, nos aplicativos gays de celular e nos chats de bate-papo da vida, aquele que diz “preferir ser passivo”, não vai ser ativo nem com uma arma apontada pra cabeça, o “versátil” é, na verdade, o passivo com vergonha, o “ativo” é o versátil botando banca e o ativo mesmo, “puro-sangue”, não está online porque está muito ocupado comendo alguém. Essas são definições machistas, claro, mas que apontam essa necessidade no meio gay de mentir sobre a sexualidade (ou “melhorá-la”) ao procurar sempre uma posição que seria a do macho, “hétero”, ativo e comedor (também não é nada incomum ler ou ouvir “não curto afeminados”, quase a antítese dessa virilidade mostrada e desejada). Por que essa questão num texto sobre promiscuidade?

Porque reproduzimos agora o mesmo padrão que há séculos subjulga as mulheres, no qual o macho (somente ativo, no caso gay, em nosso preconceituoso imaginário) tudo pode (inclusive sexualmente) e a passiva, que ocupa aqui o espaço da mulher, tida como fraca e alvo fácil de preconceitos e violências, deve resguardar-se ou correr o “terrível” risco de ficar mal falada. Mais ou menos como meu avô dizia, em relação ao mundo dele: “Prenda sua cabrita que vou soltar meu bode”.

Podemos fazer uma lista interminável de preconceitos que rondam os já estigmatizados homossexuais. Por exemplo, há aqueles que curtem pegação e “fast-foda” (uma gíria para sexo rápido) e aqueles que prezam o sexo “não-promíscuo”, “de namoro” ou tido como “mais careta”.

As definições são tão acentuadas que parece muitas vezes que a pessoa que em alguma fase da sua vida quer somente curtir e não ter compromissos sérios torna-se pior ou inferior por causa disso; e aquele que vive dentro das normas “cristãs e morais” vira um ser superior. Pelo visto, pra esses últimos, o deus cristão pode até perdoar ser gay, mas não um sexo rapidinho, pra gozar.

As razões para esses diversos tipos de comportamento são bem profundas. Os gays carecem de um processo próprio de cultura, crescem na maioria das vezes se virando com o que aprendem do padrão heterossexual, dominante. Por não terem a chance de namorar em casa e flertar na escola, nutrem vergonha do próprio desejo e descobrem a sexualidade de forma escondida, rápida, “gozando e fugindo” por culpa ou confusão.

Poucos gays que conheço não relatam terem se sentido “péssimos” depois de gozarem em algum momento da vida, pois assim que acaba a excitação vem todo o peso de milhares de anos de cultura religiosa e preconceituosa, que escolas, família e leis (ainda) incutem em nosso inconsciente. Quando isso entra de forma sólida em nosso desejo, a pessoa é considerada “puta” (o que em si vale outro texto, discutir o absurdo de puta ser uma ofensa), quer dizer “culpamos” os outros – ou a nós mesmos – por exercermos a sexualidade da forma que a sociedade homofóbica nos induziu a construir, na pressa e de forma secreta.

Outros gays vão para o extremo oposto, tentam mostrar para sociedade que são “normais”. Mas até o psicanalista alemão Sigmund Freud, em pleno século XIX, deixou claro que normalidade não existe. Esse “normal” dos gays seria “dentro das regras que nossa sociedade criou”. E, claro, para sentir-se “normal” eu preciso apontar o “anormal”, fazer parte do grupo que aponte (pra ninguém se lembrar de apontar pra mim) e, portanto, falar horrores do coleguinha com animada vida sexual.
Mas seria a “norma” realmente saudável? Canso de ler que gays são promíscuos; inclusive de religiosos mal intencionados já escutei até que balançamos a família tradicional.

Mas basta um pouco de perspectiva histórica, ou 30 minutos de conversa com a sua avó. Se ela, por exemplo, tiver mais que 81 anos, nasceu numa época onde nem votar podia. O casamento era baseado em mulheres que, em grande parte, nem tinham orgasmo! Elas não tinham direito de se divorciarem ou votarem e eram ensinadas a aceitar as “indiscrições” do marido, desde que este sustentasse a casa e a esposa oficial.

Quando estas queimaram os sutiãs, foram chamadas de vadias por serem “desquitadas”, tudo isso era contra a “moral e os bons costumes”, nome muitas vezes pomposo que o estado e a sociedade usavam (e até hoje usam) para cercear nosso acesso ao prazer ou à liberdade. Hoje isto melhorou, algumas mulheres querem gozar, querem fidelidade ou direitos iguais em casamentos abertos, querem desejar. Se os casamentos hoje duram menos é porque mandar no ser humano é possível, mas mandar no desejo e no tesão… Nunca saberemos a fórmula para isso, estes se formam no indivíduo na mais tenra idade e raramente mudam. (podem ser trabalhados na análise, amenizados, discutidos, mas as marcas da infância e da adolescência estão lá).

A meu ver, é muito saudável que tenhamos novas formas familiares, que o casamento seja eterno enquanto dure (ou “duro”) e que cada pessoa possa buscar seu desejo e seus momentos de felicidade como melhor achar que deve.

Resumindo: os gays são, hoje, o que as mulheres que ousaram ser desquitadas foram. Mas vale lembrar que a Lei do Divórcio é de 1977 e somente em 2003 (!) foi revogado do Código Civil Brasileiro o inciso que dizia que o marido poderia se divorciar da esposa caso esta não fosse virgem. Tais mudanças recentes foram provocadas por muita luta do movimento feminista; e alterações tão significativas na maneira de pensar da sociedade e nas leis também podem acontecer para o movimento gay, caso este se una com objetivos comuns e pare com brigas internas.

Mas, no momento, a segregação de um grupo com outro é palpável: gay não gosta de lésbica ou não gosta de travesti. Esta por sua vez é segregada pela transexual. Enfim, um julga o outro, fala do outro, na tentativa de recuperar sua autoestima abalada por anos de opressão social. É uma tentativa falha, visto que a fofoca no nosso meio nunca termina.

A promiscuidade é uma forma de viver; e muitas vezes apenas uma fase. Pode ainda (e veja como esse argumento pode bagunçar as noções que você tem de mundo e da pegação) indicar alguém que é tão amoroso, que se entrega tanto num relacionamento, que gosta tanto de namorar (e acaba sofrendo muito), que cria uma espécie de barreira pra se proteger de tanta dor, morre de medo de sofrer de novo, então escolhe não ter mais ninguém fixo, ser flutuante pelos bate-papos, aplicativos de celular, saunas, dark-rooms ou “florestas do sussurro” (apelido pelo qual locais de pegação como o Aterro do Flamengo, no Rio, o Ibirapuera, em SP e até o Central Park, em Nova York, nos Estados Unidos, são carinhosamente chamados).

Quando “sou de todo mundo e todo mundo é meu também”, na verdade, como a música “Os Tribalistas” (de Marisa Monte, Carlinhos Brown e Arnaldo Antunes) também diz, não sou de ninguém e esse sentimento de liberdade pode ser importante em alguns momentos da vida.

Ainda mais dentro da construção de relacionamento que temos hoje, onde namorar é abrir mão de todas as outras formas de gozo: o namorado se confunde com dono, briga pela senha das redes sociais do outro, investiga sua vida… No consultório, já escutei quem reclamasse até dos sonhos eróticos do parceiro, algo sobre o qual, coitado, ele não tem o menor controle.

A militância briga pela diversidade, mas os próprios LGBTTs parecem não lidar bem com ela: um fala mal de quem frequenta sauna ou suruba, “sente pena” dele, outro chama de careta quem quer imitar o padrão vigente e não ter trejeito algum, os afeminados levam porrada de todo lado… Coitados dos adeptos do poliamor, então, pois estes são desqualificados por quase todos, já que existem falsas crenças ainda em voga, como a que diz que só podemos amar uma pessoa de cada vez (mesmo sendo enorme o número de casais onde um dos parceiros tem mais de uma família) e a que diz que tesão e amor vivem colados.

No fundo, todos sabemos que essas crenças estão de fato erradas; a verdade é que precisamos do amor, acreditamos nele para recebermos aquilo que não temos. O psicanalista francês Jacques Lacan é claro ao dizer que “amar é dar ao outro o que não se tem e o outro não quer”, isto é, aquilo que eu queria receber (mensagens, textos, beijos, grude) eu faço para o outro (na expectativa da reciprocidade), que muitas vezes não tem desejo por essas mesmas demonstrações, mas por outras coisas que não percebemos (afinal, sempre “sabemos” o que é amar, não?).

O amor não é um só, não tem fórmula, receita e nem mágica. O sexo, então… Quanto tempo mais precisaremos para entender que cada um tem sua própria busca pela felicidade e que esta pode não ser igual pra todo mundo?
No fundo, criticamos o outro porque estamos inseguros se o nosso jeito de viver a vida é realmente correto; falar em voz alta e apontar o diferente fortalece nossa crença de que o outro é que é errado (e não nós).

Cuidado para não colocar um cinto de castidade na sua própria vida sexual ou felicidade por causa do que os outros pensam e depois jogar a chave fora.

Achá-la mais tarde pode não ser impossível, mas será bem difícil.

“Se todos conhecessem a intimidade sexual uns dos outros, ninguém cumprimentaria ninguém.”

Nelson Rodrigues

Eliseu Neto
Psicólogo, psicanalista, gestor de carreiras, professor de Pós gradução, membro do Comite LGBT carioca e gestor da coordenadoria nacional de combate à homotransfobia do PPS.